| Nos 
          anos 20, o regime soviético pré-estalinista encorajou 
          o cinema de vanguarda - mas as massas continuavam a preferir as películas 
          à Hollywood. O fato ilustra bem com que extensão o Kitsch 
          está enraizado na consciência das massas; uma extensão 
          seguramente maior do que pensam os que se inclinam a considerar o fenômeno 
          da mentalidade estética degradada um simples reflexo de condicionamentos 
          efêmeros, impostos pelos interesses dos "donos" da "indústria 
          cultural" (8). Não se trata aqui de dar razão aos 
          distribuidores cretinos, que alegam dar ao povo "o que ele quer": 
          chanchada e melodrama; trata-se, isso sim, de levar mais longe a indagação 
          sobre as raízes psicossociais do Kitsch. Em outras palavras: 
          de penetrar mais fundo na geologia moral (Nitzschiana) do homem da massa 
          e de seu antepassado cultural imediato - o burguês. Ao examinar a experiência estética peculiar ao Kitsch, 
          deparamos com o mecanismo da reação controlada. O Kitsch 
          é a estética do digestivo, do "culinário", 
          do agradável - que- não – reclama - raciocínio. 
          O Kitsch faz cosquinhas na boa consciência do homem "médio", 
          que detesta pensar, porque vive "fugindo à verdade como 
          de um incêndio" (Drummond)
 "Vivemos uma espécie de mercado negro semiótico, 
          em que as coisas sempre significam outras coisas." (Vik Muniz). 
          Como sempre, boa consciência e má-fé andam de braços 
          dados. Mas a reação controlada, garantia de alienada "distorção", 
          não esgota as metas psicológicas do Kitsch. Este visa 
          também ao efeito. O Kitsch é uma arte vocacionalmente 
          efeitista, feita "pour épater"(9). No seu artigo da 
          Partisan Review, Avant - garde and Kitsch (artigo pioneiro na análise 
          do monstro), Clement Greenberg (10) afirma que, enquanto a arte de vanguarda, 
          sendo como é, "abstrata", introspectiva e reflexiva, 
          dedicada às explorações "metalingüísticas", 
          tende a imitar os processos da arte, o Kitsch imita os efeitos da arte. 
          Numa época em que toda arte autêntica cultiva o que se 
          poderia chamar de califobia, tornando suspeito o hedonismo estético, 
          o estilo comercial estende a mão ao "bonito", regala-se 
          com o "deleite" produzido pelo recurso descarado aos truques 
          mais teatrais.
 O Kitsch não é só um narcótico e um digestivo; 
          funciona, antes disso, como um excitante vulgar. Excitar, para poder 
          "distrair" - como poderia ser de outro modo, se a questão 
          é distrair esse pobre zumbi, sonâmbulo quase totalmente 
          insensível, que é o homem comum do nosso tempo? O Kitsch 
          é o ‘tape – à - l'oeil’, a arte dos 
          efeitos que ferem a vista.
 No entanto, o efeitismo não nasceu com o Kitsch. A arte da surpresa 
          e dos efeitos teatrais remonta, pelo menos, ao barroco. "È 
          del poeta il fin la meraviglia / chi non sa far stupir, vada alla striglia"... 
          clamava o seiscentista Marino. E Góngora, embora mais requintado, 
          não desdenhava o "efectismo". Mas o barroco foi justamente 
          o primeiro estilo ocidental a comprometer-se com uma finalidade ideológica. 
          A teatralidade da pintura sacra de Caravaggio, Rubens ou Reni, e da 
          escultura religiosa de Bernini ou Raggi (Morte de Sta. Cecília, 
          Sta. Agnese in Piazza Navona, Roma) provém de um emocionalismo 
          reclamado pela "propaganda fide" da Contra - reforma (11). 
          É claro que a Idade Média se serviria abundantemente da 
          arte para fins de catequese e doutrinação; porém 
          só com o barroco, estilo de uma Igreja abalada pelo cisma protestante, 
          é que a edificação pela arte, essa "Bíblia 
          dos iletrados", adquiriu cunho francamente ideológico. As 
          pietas das elites medievais eram culturalmente espontâneas; mas 
          a religiosidade seiscentista tem muito de voluntarista e mecânica, 
          talvez porque as condições reais de vida, nessa infância 
          dos tempos modernos, fossem muito mais intensas ao genuíno ethos 
          cristão, à caridade e ao senso comunitário,.
 Contudo, embora marcada por uma forte margem ideológica, a arte 
          barroca ainda repousava num consenso cultural tão vasto quanto 
          ativo. Antes da secularização da cultura (que só 
          se firmaria no séc. XVIII) o apelo aos valores religiosos contava 
          com sólida ressonância popular. No Seiscentos, a paidéia 
          cristã estava interiormente minada e, a médio e longo 
          prazos, condenada ao recesso como foco de criação cultural; 
          não obstante, a sociedade, católica ou reformada, ainda 
          não dispunha de alternativa para o cristianismo como foco de 
          cultura. Essa posição ambígua da ideologia religiosa 
          parece explicar por que a arte de propaganda do barroco pôde fomentar 
          efeitos anagógicos, e preservar uma qualidade estética, 
          absolutamente inexistentes na produção Kitsch. Em síntese, 
          a arte barroca, expressão ideológica da transição 
          entre a sociedade européia tradicional e a moderna, foi o produto 
          de uma cultura, enquanto o Kitsch não passa de uma exalação 
          da carência de cultura (de paidéia).
 Por isso mesmo, o efeitismo barroco possuía legitimações 
          impensáveis no âmbito do Kitsch. Logo, a simples ocorrência 
          de efeitismo, sem maiores qualificações, não nos 
          autoriza a falar em Kitsch. Até porque, o efeitismo de Góngora, 
          como o de Caravaggio, faz parte de uma organização formal 
          arquicomplexa de signos (verbais ou plásticos). Na obra desses 
          cumes do barroco, o efeitismo não exclui o trajeto múltiplo, 
          intelectualmente exigente, da verdadeira percepção estética 
          (é precisamente nesse ponto, aliás, que a maioria dos 
          gongóricos e dos "tenebrosi" caravaggistas ficarão 
          muito aquém dos dois mestres: bons epígonos, eles se concentrarão 
          quase exclusivamente nos "efeitos" mais fáceis do cultismo 
          ou do "chiaroscuro"). Já a arte Kitsch dispensará 
          sem hesitação a convivência com requisitos mentalmente 
          elevados. É com o Kitsch que a arte do efeito se converte ao 
          "agradável" ao "culinário" e digestivo.
 Bibliografia
 (8) v. M. Horkheimer e Th. W. Adorno: A Indústria Cultural, in 
          Dialektik der Aufklaerung, 1947 (trad. ital., Dial’ética 
          dell’Illuminismo, Einaudi, Turim. 1966).
 (9) Efeiticista, como efctista: tomemos emprestado essa palavra, tão 
          expressiva, a nossos companheiros hispânicos.
 (10) C. Greenberg: Avant-Garde and Kitsch (1939), coligido no livro 
          de B. Rosenberg, D. M. White et. al., Mass Culture, Free Press, Glencoe, 
          1960.
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